segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Lírica Trovadoresca - contextualização

Lírica Trovadoresca

Verdades e mitos de uma época que faz sonhar

Feiras inspiradas nos mercados medievais, ou tentando reconstituir a vida quotidiana na Idade Média, proliferam todos os verões de norte a sul do país. Está na moda uma espécie de Idade Média de faz de conta. Depois do sucesso global de O Senhor dos Anéis, fantasias inspiradas num ambiente medieval eivado de magia enchem páginas de livros com um público fiel. E as histórias de fadas, príncipes encantados e anões de gorros pontiagudos pertencem à infância de todos nós. [...]
Porém, delírios à parte, a verdadeira Idade Média contém em si mesma todos os ingredientes da evasão. Mesmo que nos compenetremos de que, ao contrário do que os sonhos sugerem, viver naqueles tempos não devia ser muito agradável...
O período que designamos por Idade Média estendeu-se por mil anos, do século V ao século XV, e foi assim batizado pelos humanistas do Renascimento por ocupar o “grande vazio” situado entre a saudosa Antiguidade greco-romana e os tempos modernos. É, pois, um período demasiado longo para poder obedecer a um único padrão. [...]
Quase sempre desenvolvidas à volta do castelo do senhor, as cidades da Idade Média [...] são exatamente o cenário que as feiras medievais de hoje pretendem reproduzir. Vielas tortuosas, vendas de rua, animação, colorido – tudo isto associamos à Idade Média tal como a idealizamos. Normalmente falta, porém, o elemento realista: as casas escuras e desconfortáveis, os maus cheiros, a promiscuidade extrema, a total falta de higiene com ausência de casas de banho e esgotos, a miséria física e moral, a reduzidíssima esperança de vida (aos 40 anos, quando lá se chegava, era-se um velho), a tremenda injustiça social e a dureza do quotidiano como um todo
tornam esta época bastante sombria.
A arbitrariedade e a crueza da recolha dos impostos é um aspeto que não deve ser esquecido.
         Os impostos [...] tinham por finalidade alimentar a nobreza e o Clero, que, sem nada produzirem, viviam assim à larga. Sim, porque além da nobreza e do povo, na Idade Média havia ainda o Clero, como bem se sabe. E, como não precisava de pegar em armas arriscando a vida, foi talvez esta classe a que melhor se safou ao longo daqueles séculos. [...] Os privilégios da classe clerical não eram hereditários (nem eles podiam oficialmente ter filhos), mas eram imensos. Além disso, constituíam a única classe culta, que sabia não só ler e escrever em português e em latim, mas ainda possuía umas luzes de cultura clássica, além de conhecimentos de ordem jurídica e teológica. Ainda por cima estavam umbilicalmente ligados à Santa Sé, o que os tornava inimigos naturais dos reis, já que estes andavam sempre a espadeirar contra os ditames do Papa.
             Toda a Idade Média portuguesa – e não só portuguesa, mas peninsular e europeia em geral –, é, por isso, antes de tudo, a história de uma luta entre o poder temporal, representado pelo rei, e o poder espiritual, nas mãos dos eclesiásticos.
Esta é, aliás, uma das não menores contradições da época medieval. Por um lado, um Cristianismo corrompido pela interpretação dos padres e que já nada tinha que ver com os alertas e os ensinamentos igualitários originais, controlava e ditava todos os passos da vida, do nascimento à morte, inspirando terrores consubstanciados no pavor das chamas do inferno. Por outro, o imenso poder conquistado pelo Papa e delegado nos bispos e nos simples sacerdotes espalhados por toda a Cristandade – como se chamava à Europa – fazia desta privilegiada classe uma rival da nobreza de sangue, à qual ora se aliava ora combatia, consoante os interesses imediatos do momento. [...] Uma palavra ainda para os escravos. Sim, havia escravos no Portugal medieval [...]. Normal- mente esses escravos eram Mouros feitos prisioneiros durante os raides lançados no sul. Não formavam uma classe social propriamente dita, nem tinham já o valor económico do tempo dos Romanos, quando tudo assentava no trabalho produzido pelos escravos – mas que os havia, havia, labutando acorrentados nos campos e maldizendo (com toda a razão) a sua triste sina.
A propósito de lutas contra os Mouros, convém que fique esclarecido como estas coisas se passavam e como funcionavam as lealdades. Num tempo em que não existiam práticas políticas como hoje as entendemos e a cidadania e o civismo – assim como o patriotismo – eram conceitos há muito esquecidos e enterrados com a República Romana, a lealdade de um súbdito ao seu suserano estava acima de todo e qualquer valor moral. A ideia de Estado ainda não fizera o seu caminho e os domínios do rei assemelhavam-se a uma enorme quinta de que ele era dono e senhor. Os barões eram os administradores ou feitores dessas terras, tal como, a uma outra escala, os socialmente desqualificados servos da gleba eram comprados, vendidos e transmitidos por herança juntamente com elas, como árvores de fruto, casais, pontes ou moinhos. Mas, sobretudo, os barões eram os homens de armas do rei. Eram eles que combatiam pessoalmente ao seu lado, levando atrás, é certo, a criadagem. Combater era uma honra que lhes estava reservada.
Só mais tarde os besteiros seriam arregimentados entre os homens do povo e os peões surgiriam a combater – os “ventres ao sol”, como lhes chamaria o grande cronista Fernão Lopes, por se apresentarem na guerra e na vida de tronco nu e apenas com uns farrapos à laia de calças. [...] O que interessa sobretudo reter deste período [...] é a ideia de que, se do lado muçulmano o poder político estava pulverizado por inúmeros estados minúsculos, da banda cristã o panorama era semelhante, apenas com a diferença de que os condados dependiam nominalmente dos reinos que, em teoria, estavam acima deles e os englobavam. Mas só em teoria, porque a sua independência era quase total.
Dentro destas unidades políticas quem mandava verdadeiramente eram ou os senhores locais ou os municípios. [...]
Viajar era [...] muito difícil porque... praticamente não havia estradas, a não ser [...] o que sobrava das antigas vias romanas. Mas os rios, esses, eram largamente utilizados como vias de comunicação. [...]
Viajar por mar era preferível a fazê-lo por terra. Para ir, por exemplo, de Lisboa a Barcelona ou a Valência, ninguém pensava em atravessar a Península – era preferível contorná-la. [...]
Mas, de uma forma geral, não se viajava. Apenas os nobres e os guerreiros que estes arrastavam atrás de si se deslocavam, sobretudo por razões militares ou diplomáticas. Quanto à gente do povo, normalmente nascia e morria sem se ter afastado mais de 30 quilómetros do seu local de residência – e se o fazia era sobretudo para ir, a pé e descalço, a feiras ou a romarias.
Como a esperança de vida era reduzida, todas as classes sociais viviam depressa e com intensidade. [...] Hoje as coisas não são assim tão diferentes como parece, mas a experiência acumulada dos séculos contribui para nos apetrechar com um olhar mais reflexivo e ponderado sobre as coisas. E, estatisticamente, temos um nadinha mais de tempo para viver e sonhar. Nada disto impede que a Idade Média exerça sobre nós um fascínio tremendo [...]. E que as “feiras medievais”, todos os verões, de norte a sul de Portugal, se encarregam de espevitar e de manter aceso, como se se tratasse do próprio fogo da vida.


MARTINS, Luís Almeida, 2012. “Verdades e mitos de uma época que faz sonhar”. Visão, n.o 1014, 9 de agosto de 2012 (pp. 70-74)

2 comentários:

  1. alguém poderia-me explicar o plano social, cultural, económico e religioso deste texto? é que não estou a perceber?

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    1. Trata-se da época medieval, especificamente a altura em que surge a Lírica Trovadoresca - génese da literatura portuguesa.

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