Lírica Trovadoresca
Verdades e mitos de
uma época que faz sonhar
Feiras inspiradas nos mercados medievais, ou tentando
reconstituir a vida quotidiana na Idade Média, proliferam todos os verões de norte
a sul do país. Está na moda uma espécie de Idade Média de faz de conta. Depois
do sucesso global de O Senhor dos Anéis, fantasias inspiradas num
ambiente medieval eivado de magia enchem páginas de livros com um público fiel.
E as histórias de fadas, príncipes encantados e anões de gorros pontiagudos
pertencem à infância de todos nós. [...]
Porém, delírios à parte, a verdadeira Idade Média contém em si
mesma todos os ingredientes da evasão. Mesmo que nos compenetremos de que, ao
contrário do que os sonhos sugerem, viver naqueles tempos não devia ser muito
agradável...
O período que designamos por Idade Média estendeu-se por mil
anos, do século V ao século XV, e foi assim batizado pelos humanistas do
Renascimento por ocupar o “grande vazio” situado entre a saudosa Antiguidade
greco-romana e os tempos modernos. É, pois, um período demasiado longo para
poder obedecer a um único padrão. [...]
Quase sempre desenvolvidas à volta do castelo do senhor, as
cidades da Idade Média [...] são exatamente o cenário que as feiras medievais
de hoje pretendem reproduzir. Vielas tortuosas, vendas de rua, animação,
colorido – tudo isto associamos à Idade Média tal como a idealizamos.
Normalmente falta, porém, o elemento realista: as casas escuras e
desconfortáveis, os maus cheiros, a promiscuidade extrema, a total falta de
higiene com ausência de casas de banho e esgotos, a miséria física e moral, a
reduzidíssima esperança de vida (aos 40 anos, quando lá se chegava, era-se um
velho), a tremenda injustiça social e a dureza do quotidiano como um todo
tornam
esta época bastante sombria.
A arbitrariedade e a crueza da recolha dos
impostos é um aspeto que não deve ser esquecido.
Toda a
Idade Média portuguesa – e não só portuguesa, mas peninsular e europeia em
geral –, é, por isso, antes de tudo, a história de uma luta entre o poder
temporal, representado pelo rei, e o poder espiritual, nas mãos dos
eclesiásticos.
Esta é, aliás, uma das não menores contradições da época
medieval. Por um lado, um Cristianismo corrompido pela interpretação dos padres
e que já nada tinha que ver com os alertas e os ensinamentos igualitários
originais, controlava e ditava todos os passos da vida, do nascimento à morte,
inspirando terrores consubstanciados no pavor das chamas do inferno. Por outro,
o imenso poder conquistado pelo Papa e delegado nos bispos e nos simples
sacerdotes espalhados por toda a Cristandade – como se chamava à Europa – fazia
desta privilegiada classe uma rival da nobreza de sangue, à qual ora se aliava
ora combatia, consoante os interesses imediatos do momento. [...] Uma palavra
ainda para os escravos. Sim, havia escravos no Portugal medieval [...]. Normal-
mente esses escravos eram Mouros feitos prisioneiros durante os raides lançados
no sul. Não formavam uma classe social propriamente dita, nem tinham já o valor
económico do tempo dos Romanos, quando tudo assentava no trabalho produzido
pelos escravos – mas que os havia, havia, labutando acorrentados nos campos e
maldizendo (com toda a razão) a sua triste sina.
A propósito de lutas contra os
Mouros, convém que fique esclarecido como estas coisas se passavam e como
funcionavam as lealdades. Num tempo em que não existiam práticas políticas como
hoje as entendemos e a cidadania e o civismo – assim como o patriotismo – eram
conceitos há muito esquecidos e enterrados com a República Romana, a lealdade
de um súbdito ao seu suserano estava acima de todo e qualquer valor moral. A ideia
de Estado ainda não fizera o seu caminho e os domínios do rei assemelhavam-se a
uma enorme quinta de que ele era dono e senhor. Os barões eram os
administradores ou feitores dessas terras, tal como, a uma outra escala, os
socialmente desqualificados servos da gleba eram comprados, vendidos e
transmitidos por herança juntamente com elas, como árvores de fruto, casais,
pontes ou moinhos. Mas, sobretudo, os barões eram os homens de armas do rei.
Eram eles que combatiam pessoalmente ao seu lado, levando atrás, é certo, a
criadagem. Combater era uma honra que lhes estava reservada.
Só mais tarde os
besteiros seriam arregimentados entre os homens do povo e os peões surgiriam a
combater – os “ventres ao sol”, como lhes chamaria o grande cronista
Fernão Lopes, por se apresentarem na guerra e na vida de tronco nu e apenas com
uns farrapos à laia de calças. [...] O que interessa sobretudo reter deste
período [...] é a ideia de que, se do lado muçulmano o poder político estava
pulverizado por inúmeros estados minúsculos, da banda cristã o panorama era
semelhante, apenas com a diferença de que os condados dependiam nominalmente
dos reinos que, em teoria, estavam acima deles e os englobavam. Mas só em
teoria, porque a sua independência era quase total.
Dentro destas unidades
políticas quem mandava verdadeiramente eram ou os senhores locais ou os
municípios. [...]
Viajar era [...] muito difícil porque... praticamente não
havia estradas, a não ser [...] o que sobrava das antigas vias romanas. Mas os
rios, esses, eram largamente utilizados como vias de comunicação. [...]
Viajar por mar era preferível a fazê-lo por terra. Para ir, por
exemplo, de Lisboa a Barcelona ou a Valência, ninguém pensava em atravessar a
Península – era preferível contorná-la. [...]
Mas, de uma forma geral, não se viajava. Apenas os nobres e os
guerreiros que estes arrastavam atrás de si se deslocavam, sobretudo por razões
militares ou diplomáticas. Quanto à gente do povo, normalmente nascia e morria
sem se ter afastado mais de 30 quilómetros do seu local de residência – e se o
fazia era sobretudo para ir, a pé e descalço, a feiras ou a romarias.
Como a
esperança de vida era reduzida, todas as classes sociais viviam depressa e com
intensidade. [...] Hoje as coisas não são assim tão diferentes como parece, mas
a experiência acumulada dos séculos contribui para nos apetrechar com um olhar
mais reflexivo e ponderado sobre as coisas. E, estatisticamente, temos um
nadinha mais de tempo para viver e sonhar. Nada disto impede que a Idade Média
exerça sobre nós um fascínio tremendo [...]. E que as “feiras medievais”, todos
os verões, de norte a sul de Portugal, se encarregam de espevitar e de manter
aceso, como se se tratasse do próprio fogo da vida.
MARTINS, Luís Almeida,
2012. “Verdades e mitos de uma época que faz sonhar”. Visão, n.o 1014, 9
de agosto de 2012 (pp. 70-74)
alguém poderia-me explicar o plano social, cultural, económico e religioso deste texto? é que não estou a perceber?
ResponderEliminarTrata-se da época medieval, especificamente a altura em que surge a Lírica Trovadoresca - génese da literatura portuguesa.
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