quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Comentário à cantiga de Escárnio "Ai dona fea"

Comentário à Cantiga de Escárnio

Ai, dona fea, fostes-vos queixar                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   


Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv'en [o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

Joan Garcia de Guilhade, CV 1097, CBN 1486

             As cantigas de escárnio e maldizer fazem parte da lírica trovadoresca. Nestas, o trovador tece a sua crítica a algo ou alguém, identificando o alvo da sua crítica, nas cantigas de maldizer ou encobrindo o objecto criticado, nas de escárnio. A sátira existente nestas cantigas é sempre mordaz e pode ser individual ou social.
     
       Na cantiga de escárnio proposta para análise, o trovador critica uma «dona», que, segundo ele, se foi «queixar/que vos nunca louv’en [o] meu cantar». O trovador decide então «loar» esta «dona» como «fea, velha e sandia», verso que se repete no final de todas as estrofes (refrão), adquirindo um ritmo rápido, conferindo-lhe uma certa mordacidade e que reforça a crítica feita pelo sujeito de enunciação. Estas três características negativas atribuídas à «dona» possuem uma grande importância, na medida em que o número três é o símbolo da perfeição, da totalidade, sendo a «dona» o exemplo de perfeição nestas três categorias «fea, velha e sandia».
            Para além da crítica à «dona fea», são também ridicularizadas as próprias cantigas de amor, pois o trovador afirma que fará «já un bon cantar» «en que vos loarei toda via», desvirtualizando o sentimento que poderia existir nesses cantares.
            No que diz respeito aos artifícios poéticos, para além do paralelismo semântico, de que são constituídas as três estrofes que compõem a cantiga, existe o mozdobre através do verbo «loar» («louv’en»; «loar»; «loarei»; «loaçon»; «loei») o que reforça o objectivo do trovador: louvar a «dona fea».
Relativamente à  sua estrutura formal, esta é uma cantiga de refrão, constituída, como já foi referido, por três estrofes de cinco versos (quintilhas) predominantemente decassilábicos «Ai/ do/na/ fe/a/ fos/tes/vos/ quei/xar/» e refrão monóstico octossilábico «do/na/ fe/a/ ve/lha e/ san/di/a». Quanto à rima, esta apresenta-se emparelhada em «queixar», «cantar» e «cantar» e cruzada em «via» e «sandia», de acordo com o seguinte esquema rimático: aaabab, que se repete ao longo das três estrofes. Em relação às classes de palavras, a rima é predominantemente pobre, como em «coraçon» e «razon». No que respeita à acentuação é predominantemente aguda «loei», sendo grave no refrão «sandia» e no que concerne à fonia é predominantemente consoante na primeira estrofe «cantar» e na segunda «razon» e toante na terceira «loei».

Concluindo, estamos perante uma cantiga de escárnio que crítica uma «dona fea» que por se ter queixado de não ter sido louvada por este trovador, recebe agora uma “cantar de amor” envenenado, pois não tem nenhum elogio à sua pessoa.

Sem comentários:

Enviar um comentário