sexta-feira, 12 de abril de 2013

Poemas dispersos - Mário de Sá Carneiro (3 poemas)

 CARANGUEJOLA

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.





Quase  

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...





MANUCURE

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol – dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar – e apenas forcados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...

Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
– Que rendas outros bailados!

É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...
Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

– Ó beleza futurista das mercadorias!

– Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... –
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:

FRÁGIL! FRÁGIL!

843 – AG LISBON

492 – WR MADRID

Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco – célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
– Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,

Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...
– Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...

...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.

                                                    Apoteose
....................................................................
Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que faltava na paisagem...
As ondas acústicas ainda mais a sutilizam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas corças de Alma...

Pede uma voz um número ao telefone:
Norte - 2, 0, 5, 7...
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
                Assunção da Beleza Numérica


Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
Não tem fim a maravilha!
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...


-Meus olhos extenuaram de Beleza!


Inefável devaneio penumbroso-
Descem-me as pálpebras vislumbradamente...
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...Começam-me a lembrar anéis de jade
De certas mãos que um dia possuí-
E ei-los, de sortilégio, já enroscando o Ar...
Lembram-me beijos -e sobem
Marchetações a carmim...


Divergem hélices lantejoulares...
Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
Pequenos timbres de ouro se enclavinham...
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
Quebram-se estrelas, soçobram plumas...


Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,
Fincadamente os cerro...


Embalde! Não há defesa:
Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão -
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...


- Ó mágica teatral da atmosfera,
- Ó mágica contemporânea - pois só nós,
Os de Hoje, te dobramos e fremimos!
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Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!
Eu próprio sinto-me ir transmitindo pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!...


(Como tudo é diferente
Irrealizado a gás:
De livres-pensadores, as mesas fluídicas,
Diluídas,
São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)


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Sereno,
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o Matin.
Meus olhos, já tranqüilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipográfica.


Eh-lá! Grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crônicas diárias!
Corpo 12 romano, instalado, burguês e confortável!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anúncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os puzzles frívolos - e as aspas... os acentos...
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!

 - Abecedários antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Eslavos, árabes, latinos -,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...

(Hip! Hip-lá! Nova simpatia onomatopaica,
Recendente da beleza alfabética pura:
Uu-um... kess-kress... vliiim... tlin... blong… flong… flak…
Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)

Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da Última-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!

-Hurrah! Por vós, indústria tipográfica!
-Hurrah! Por vós, empresas jornalísticas!


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....................................................................................

Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá também:
Números e letras, firmas e cartazes -
Altos-relevos, ornamentação!... -
Palavras em liberdade, sons sem-fio,


Marinetti + Picasso = Paris <Santa Rita Pin-
Tor + Fernando Pessoa
Álvaro de Campos
!!!!


Antes de me erguer lembra-me ainda,
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares... não sei porquê...

-Un vermouth-cassis... Un Pernod à l’eau...
Un amer-citron... une grenadine…

………………………………………………..
………………………………………………..
…………………………………………………

Levanto-me…
-Derrota!
Ao fundo, em mayor excesso, há espelhos que refletem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através deles,
A mais sutil destaque...
-Ó sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,
Essa beleza pura!

Rolo de mim por uma escada abaixo...
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da idéia de que as pintava...
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:

-Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...

Tum... tum... tum... tum tum tum tum...


9; Vliiimiiiim...


Brá-ôh... Brá-ôh... Brá-ôh!...

Futsch! Futsch!...

 
Zing-tang... zing-tang...
              Tang... tang... tang...


9;     Pra á K K!...

Poemas Dispersos, Lisboa – Maio de 1915

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